quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Deus Fez a Noite - António Nobre


Deus Fez a Noite

Deus fez a noite com o teu olhar,
Deus fez as ondas com os teus cabelos
Com a tua coragem fez castelos,
Que pôs, como defesa, à beira mar.

Com um sorriso teu, fez o luar
(Que é sorriso de noite ao viandante)
E eu, que andava pelo mundo errante,
Já não ando perdido em alto mar!

Do céu de Portugal fez a tua alma!
E ao ver-te sempre assim, tão pura e calma,
Da minha Noite eu fiz a Claridade!

O meu anjo de luz e de esperança
Será em ti, afinal, que descansa
O triste fim da minha mocidade!

António Nobre
18/08/1867 – 18/03/1900

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

passagem a limpo - Mário Cesariny


passagem a limpo

O navio morto
que sobe a corrente
de que velho porto
era o adolescente?

Cingiam-lhe a boca
água e nevoeiro?
Tinha muita, pouca
falta de dinheiro?

Bom barco,subido
aos da mor igualha,
tens o ombro ferido
até à fornalha

E puxado a cabos
- este rei de oceanos! –
por ginasticados
loiros namorados
a diesel e canos

Foi-lhe a estrela má.
- E se recomeça?
- Vamos daqui já
enterrá-lo depressa.

Vai morto. Não sonha.
Não grita. Não soa.
Saiu-lhe a peçonha
pelo buraco da proa

Mário Cesariny
09/08/1923 – 26/11/2006

sábado, 26 de novembro de 2011

SONHO - Antero de Quental


SONHO

Sonhei – nem sempre o sonho é coisa vã –
Que um vento me levava arrebatado,
Através d´esse espaço constelado
Onde uma aurora eterna ri louçã…

As estrelas, que guardam a manhã,
Ao verem-me passar triste e calado,
Olhavam-me e diziam com cuidado:
Onde está, pobre amigo, a nossa irmã?

Mas eu baixava os olhos, receoso
Que traíssem as grandes mágoas minhas,
E passava furtivo e silencioso,

Nem ousava contar-lhes, às estrelas,
Contar às tuas puras irmãzinhas
Quanto és falsa, meu bem, e indigna d´elas!

Antero de Quental
18/04/1842 – 11/09/1891

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Eu Não o Quero, Amada - Pablo Neruda


Eu não o quero, Amada.

Para que nada nos amarre,
que não nos prenda nada.

Nem a palavra que perfumou tua boca,
nem o que não disseram as palavras.

Nem a festa de amor que não tivemos,
nem os teus soluços à janela.

Pablo Neruda
(12/07/1904 – 23/09/1973)
Prémio Nobel da Literatura em 1971

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Saudades - Luís de Camões


Saudades

Sempre dentro de mim as sinto e vejo
Estas saudades, estas gratas flores;
Um dia acariciando com um beijo
Outro dia pungindo com as dores.

Às vezes como um sonho malfazejo,
Pintando a luz do inferno de vivas cores,
Às vezes mais ardente que o desejo,
Sonhando em céus danil um céu d´amores.

Sustentam-se de mim, e eu d´elas vivo;
Minhas cativas são, e eu sou cativo;
São todo o meu sofrer, todo o meu gozo.

Que as sinta eu sempre em mim, sempre famintas
De não senti-las morrerei saudoso!
Ai! Se tenho de as ver um dia extintas.

Luís de Camões

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Quando - Sophia de Mello Breyner Andresen


   QUANDO

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta.
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

Sophia de Mello Breyner Andresen
    (06/11/1919 - 02/07/2004)

Alma Minha - Luís de Camões


Alma Minha

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no céu eternamente,eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento Etéreo onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente,
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te;

Roga a Deus que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou. 

Luís de Camões
(1524 - 10 06 1580)

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O Mostrengo - Fernando Pessoa


O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: "Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?"
E o homem do leme disse, tremendo:
"El-Rei D. João Segundo!"

"De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?"
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
"Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?"
E o homem do leme tremeu, e disse:
"El-Rei D. João Segundo!"

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
"Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!"

Fernando Pessoa


Extraído da obra “MENSAGEM”, único livro publicado em vida de Fernando Pessoa.
Fernando Pessoa nasceu em Lisboa, em 13 de Junho 1888.
Faleceu em Lisboa, em 30 de Setembro de 1935

domingo, 13 de novembro de 2011

Os Meus Amigos - Camilo Castelo Branco


                         OS MEUS AMIGOS

                    Amigos, cento e dez e talvez mais
                    Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
                    Pensei que sobre a terra não havia
                    Mais ditoso mortal entre os mortais

                    Amigos, cento e dez, tão serviçais,
                    Tão zelosos das leis da cortesia,
                    Que eu, já farto de os ver, me escapolia,
                    Às suas curvaturas vertebrais.

                    Um dia adoeci profundamente:
                    Ceguei. Dos cento e dez, houve um somente
                    Que não desfez  os laços quase rotos.

                    “Que vamos lá – diziam – lá fazer?
                    Se ele está cego não nos pode ver...”
                    Que cento e nove impávidos marotos!

                             Camilo Castelo Branco

                    Nasceu em 1825 em Lisboa e suicidou-se
                    A 1 de Junho de 1890 em S. Miguel de Ceide
                    (Famalicão)

sábado, 12 de novembro de 2011

Jacob - Luís de Camões


Jacob

Sete anos de pastor, Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começou a servir outros sete anos
Dizendo: «Mais servira se não fôra
Para tam longo amor, tam curta a vida!»

Luís de Camões
(1524 – 10/06/1580)

O ESCULTOR E A TARDE - Sophia de Mello Breyner Andreson


O ESCULTOR E A TARDE

No meio da tarde
Um homem caminha:
Tudo em suas mãos
Se multiplica e brilha.

O tempo onde ele mora
É completo e denso
Semelhante ao fruto
Interiormente aceso.

No meio da tarde
O escultor caminha:
Por trás de uma porta
Que se abre sozinha
O destino espera.

E depois a porta
Se fecha gemendo
Sobre a Primavera.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(06/11/1919 – 02/07/2004)

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Nova Ilusão - Fernando Pessoa


Nova Ilusão

No rarear dos deuses e dos mitos
Deuses antigos, vós ressuscitais
Sob a forma longínqua de ideais
Aos enganados olhos sempre aflitos.

Do que vós concebeis mais circunscritos,
Desdenhais a alma exterior dos ritos
E o sentimento que os gerou guardais.

Lá para além dos seres, ao profundo
Meditar, surge, grande e impotente
O sentimento da ilusão do mundo.

Os falsos ideais do Aparente
Não o atingem – único final
Neste entenebrecer universal

Fernando Pessoa
13/061888 – 30/11/1935