sábado, 31 de agosto de 2013
Toma Toma Toma - Alexandre O´Neill
Toma Toma Toma
Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos,
mas para rachar as cabeças.
O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada estória
da nossa própria vida.
Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral de classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.
Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.
Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses
matraquilhos da comédia humana.
Alexandre O´Neill
Nasceu em Lisboa a 19 de Dezembro de 1924
Faleceu a 21 de Agosto 1986
domingo, 18 de agosto de 2013
Balada da Neve - Augusto Gil
Balada da Neve
Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.
É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...
Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...
Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...
E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...
Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...
E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
– e cai no meu coração.
Augusto Gil
(1873 – 1929)
segunda-feira, 12 de agosto de 2013
Amar! - Florbela Espanca
Amar!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi p´ra cantar!
E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder...p´ra me encontrar...
Florbela Espanca
Nasceu Vila Viçosa 8/12/1894
Faleceu Matosinhos 8/12/1930
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
A Captura e a Morte-Federico Garcia Lorca
A Captura e a
Morte
Às cinco da
tarde.
Eram cinco da
tarde em ponto.
Um menino trouxe
o branco lençol
às cinco horas
da tarde.
Uma esporta de
cal já prevenida
às cinco horas
da tarde.
O mais era morte
e somente morte
às cinco horas
da tarde.
O vento levou os algodões
às cinco horas
da tarde.
E o óxido semeou
cristal e níquel
às cinco horas
da tarde.
Já lutam a pomba
e o leopardo
às cinco horas
da tarde.
E uma coxa para
um chifre destroçada
Às cinco horas
da tarde.
Começaram os
sons do bordão
às cinco horas
da tarde.
Os sinos de
arsénico e a fumaça
às cinco horas
da tarde.
Nas esquinas
grupos de silêncio
às cinco horas
da tarde.
E o touro com
todo o coração para a frente!
às cinco horas
da tarde.
Quando o suor de
neve foi chegando
às cinco horas
da tarde,
quando a praça
se cobriu de iodo
às cinco horas
da tarde,
a morte botou
ovos na ferida
às cinco horas
da tarde.
As cinco horas
da tarde,
Ás cinco em
ponto da tarde
Um
ataúde com rodas é a cama
às cinco horas
da tarde.
Ossos e flautas
soam-lhe ao ouvido
às cinco horas
da tarde.
Por sua frente
já mugia o touro
às cinco horas
da tarde.
O quarto se
irisava de agonia
às cinco horas
da tarde.
De longe já se
aproxima a gangrena
às cinco horas
da tarde.
Trompa de lírio
pelas verdes virilhas
às cinco horas
da tarde.
As feridas
queimavam como sóis
às cinco horas
da tarde,
e as pessoas
quebravam as janelas
às cinco horas
da tarde.
Às cinco horas
da tarde.
Ai que terríveis
cinco horas da tarde!
Eram cinco horas
em todos os relógios!
Eram cinco horas
da tarde em sombra!
Federico Garcia
Lorca
1898 - 1936
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